sábado, 22 de janeiro de 2022

UMA CRÍTICA À ECONOMIA CLÁSSICA

Continuação: 3ª Parte

Igac nº 151/2022

AS CRISES E A MÃO INVISÍVEL DE ADAM SMITH

- No contexto histórico-social, filosófico, ideológico e político -


Introdução

No artigo "Crítica à economia clássica - démarche, fundamentos, contradições, incoerências -" comentei que a mão invisível de Adam Smith é a consequência dos approachs metodológicos utilizados pela economia clássica, tomados por "empréstimos" das ciências  naturais, se assemelhando ao Grande Relojoeiro, responsável pela harmonia do universo. 

Este artigo visa aprofundar, estabelecer e analisar as razões e as condições históricas, sociais e ideológicas que influenciaram a concepção desta mão invisível, como reguladora da economia, assuntos desprezados pelos teóricos da economia clássica, que se satisfazem apenas em repeti-la como uma verdade incontestável, em todas e quaisquer ocasiões, sem uma análise de suas consequências. 

Na parte final do artigo tento extrair do próprio texto em que Smith faz alusão à mão invisível uma outra possível interpretação, diferente da tradicional.

Este artigo não traz considerações sobre as relações internacionais, o período da Pax-Britânica, momento em que a Grâ-Bretanha consolida e expande o seu poder econômico-político-social e, como consequência, seu modelo teórico-ideológico do liberalismo econômico, à sua feição e em benefício próprio, com a "Teoria das Vantagens Comparativas", de David Ricardo. (Sobre o assunto consultar "A ideologia das vantagens comparativas", junho de 2014, neste blog).

Desnecessário dizer que após o declínio britânico os EUA substituíram e assumiram a posição para difundir, aprofundar e implementar politicamente a ideologia do liberalismo econômico no mundo. 

Os diversos contextos
 
Nossa história começa com a decadência do sistema feudal e com o surgimento de novas de economias monárquicas absolutistas, que irão possibilitar, concomitantemente, as condições "materiais" para o surgimento das ciências naturais, cuja metodologia trará uma nova visão de mundo. 

Como surge esta nova visão de mundo é uma questão não consensual entre os diversos "cientistas" sociais.

Cito Japiassu:

"Para compreendermos melhor as condições sócio-histórico-culturais em que a Ciência Moderna se constituiu e se desenvolveu, lembremos que a burguesia ascendente, independentemente de seu projeto estritamente econômico-político, suscita uma nova apropriação do mundo sob a forma de uma nova ciência. [...] Mediações socioculturais também desempenharam um papel importante. As mais importantes foram o realismo e o racionalismo próprios aos novos empreendedores. Na formação desse realismo e desse racionalismo, as práticas e os hábitos mentais típicos do capitalismo tiveram um papel relevante. Em seguida, essas atitudes adquiriram dignidade cultural própria e difundiram-se em todos os setores da vida social. Numa palavra, as mudanças econômicas e sociais que culminaram com a instauração do sistema capitalista são inseparáveis de uma mudança de mentalidade. E quando o poder temporal passa para as mãos dos burgueses, estes passam a controlar também o poder espiritual. Nessas condições, a Ciência Moderna ou "ocidental" não poderia ter surgido da cabeça de alguns sábios. Foi um produto genuinamente sócio-histórico-cultural", em "Como nasceu a ciência moderna", p. 115, negritos meus. 

Fixado este ponto de vista, Galileu Galilei (1564-1642), considerado o pai da Ciência Moderna, irá iniciar as suas pesquisas científicas que entrarão em choque para a concepção tradicional, sob a tutela da Igreja Católica. 

No artigo "Crítica à teoria econômica clássica - approachs, fundamentos, incoerências -", postado neste blog, procurei esclarecer os fundamentos deste saber e as suas repercussões sobre as ciências sociais e, em particular, a economia.  

Portanto, a desintegração do sistema feudal se dá em diversas frentes, num processo lento que, sem dúvidas, passa por uma luta pelo poder.
 
Na Inglaterra a contestação ao poder monárquico absolutista culmina com a assinatura da Carta Magna, por João "sem terra" (1216) e irá se prolongar até a Revolução Gloriosa de 1688/9, prenúncio da Revolução Francesa (1789).
 
Mas, é particularmente no século XVIII que surgem as grandes contestações sob a orientação dos filósofos iluministas, dentre os quais se destacam: David Hume (1711-1776), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Voltaire (1694-1778), Immanuel Kant (1724-1804), Diderot (1713-1784), Montesquieu (1689-1755) e como não poderia deixar de ser Adam Smith (1723-1790).

Sobre o Iluminismo, Japiassu & Marcondes afirmam:

"Movimento filosófico também conhecido como Esclarecimento, Ilustração ou Século das Luzes, que se desenvolve particularmente na França, Alemanha e Inglaterra no século XVIII, caracterizando-se pela defesa da ciência e da racionalidade crítica, contra a fé, a superstição, e o dogma religioso. Na verdade, o Iluminismo é muito mais do que um movimento filosófico, tendo uma dimensão literária, artística e política. No plano político, o Iluminismo defende as liberdades individuais e os direitos dos cidadãos contra o autoritarismo e o abuso do poder", em "Dicionário básico de filosofia", itálicos meus.

E Jenkins:

"As suas raízes residiam no racionalismo do filósofo francês René Descartes (1632-1650) e no pai do liberalismo britânico John Locke (1632-1704)... . Procurou inspiração na revolução científica associada à Royal Society de Londres e nos trabalhos de Robert Boyle, na química", p. 201.

Enfim, o Iluminismo acreditava que o futuro da humanidade contra o autoritarismo e o servilismo estaria na racionalidade do conhecimento científico e na liberdade, condições para que o ser humano se libertasse de todos os grilhões que o aprisionavam. Que através da ciência e da liberdade seria possível eliminar a pobreza e demais mazelas que acompanham o ser humano em sua história.
 
Influenciou os líderes americanos da Independência dos Estados Unidos da América (1776) sob os ideais de "liberdade" no seu sentido lato, direito natural, nato, inseparável e inalienável do ser humano, incluindo a liberdade de escolher o governante e destituí-lo, de vir e ir, de pensamento, de expressão, de imprensa, e de igualdade perante a lei. 

Afora estas contestações, o século XVIII, mormente no seu último quartel, foi um período turbulento da história, com a ocorrência de dois fatos políticos marcantes que irão repercutir nos destinos de diversos sistemas sócio-políticos na Europa. Em 1776 ocorre a Independência dos Estados Unidos da América, com a adoção de um sistema democrático republicano, de acordo com os ideais libertários, que terá grande repercussão no mundo. Poucos anos depois, sob as ideias iluministas irrompe a Revolução Francesa (1789), com os lemas liberté, igualité, fraternité, seguindo o Período do Terror (1793), surgindo após estes anos o momento propício para a ascensão de Napoleão ao poder (1799). A seguir viriam as Guerras Napoleônicas (1803). Os períodos anteriores a estes acontecimentos também não devem ser menosprezados.

Jenkins nos dá uma panorama destes períodos que desencadearam estes eventos, com relação a Independência e suas consequências na Europa, principalmente, na França antes da Revolução Francesa:
 
"A Guerra de Independência dos EUA foi o primeiro exemplo prático dos princípios do Iluminismo de igualdade e liberdade de ação. [...] Foi a aplicação prática do trabalho amplamente divulgado de Rousseau, O Contrato Social, de 1762".

"A França, contudo, considerava-se mais progressista, a fonte do pensamento do pensamento novo. Esta situação havia ajudado os rebeldes e o seu general, Lafayette, entregou-lhes o comando militar. Por isso Paris ferveu em debate. [...] Em 1780, Luís implementaria reformas parciais, suavizando a censura, abolindo a tortura judicial e a servidão".

"No decênio de 1780 a França caminhava para a bancarrota. O país sofria com a deficiência das colheitas e com a fome  e esta medida (o autor se refere a proposta de um imposto, por Jacques Necker) enfrentou tumultos imediatos", p. 209. 

A Guerra dos Sete Anos contra a Grã Bretanha (1756) teve como consequência a "perda das possessões coloniais da América do Norte", tendo como consequência o apoio financeiro e militar francês aos rebeles americanos na luta pela independência. Este apoio endividou severamente o governo, (Revolução Francesa - Wikipédia, a enciclopédia livre, em https://pt,wikipedia,org). 

Ao mesmo tempo, na Inglaterra ocorre a revolução industrial (não existe concordância das datas: 1760, 1780 para Eric Hobsbawm, entre 1760 e 1830 para outros), que consolida o capitalismo como sistema de produção (modo de produção) dominante, com grandes mudanças tecnológicas no processo produtivo, conduzido por máquinas, com o auxílio da ciência. Entretanto, como Smith escreveu "A Riqueza das Nações", 1776, presume-se que o capitalismo já tinha se consolidado como modo de produção dominante.  

Smith, considerado o "fundador da economia política "liberal"" (Japiassu) era um filósofo iluminista e, como tal, partilhava das concepções iluministas, da liberdade e fé na ciência. A sua visão de mundo baseava-se numa concepção naturalista, por influência das metodologias das ciências naturais. 

Portanto, na época em que Smith escreveu "A Riqueza das Nações", publicado em 1776, o capitalismo era um sistema de produção incipiente, sendo impossível que uma pessoa com sua formação intelectual percebesse todas as suas "fragilidades" e deficiências. Era, antes de tudo, um filósofo iluminista, adepto e entusiasta do novo regime. Além disto, este novo sistema vinha substituir um antigo que já vinha sendo posto em cheque há bastante tempo, pelo menos na Inglaterra. E, sem dúvidas, um sistema economicamente mais eficiente, que tinha colocado a ciência em prol da produção.

Antes do surgimento da economia capitalista, da revolução industrial, as crises econômicas ocorriam principalmente em decorrência de catástrofes naturais, de guerras (inclusive religiosas) que traziam problemas financeiros aos Estados e, em poucos casos, por especulação com moedas e commodities, especulação que não era específica e tipicamente do modo de produção capitalista:                                                                                          

Conforme Kindleberger & Aliber:

"A história das crises financeiras começou com o dinheiro metálico: o crédito dos bancos ou outros financiadores não foi envolvido. Príncipes, abades, bispos e até mesmo o Sacro Imperador Romano reduziram a cunhagem de moedas secundárias usadas nas transações diárias (mas não as de prata e ouro de denominações maiores), aumentando a denominação das já existentes, substituindo a base por bons metais e reduzindo o conteúdo metálico delas para também diminuir a diferença entre o custo de produção das moedas e seu valor nominal, em preparação para a Guerra dos Trinta Anos, iniciada em 1618. A redução da quantidade de metal ocorreu somente em seus próprios territórios, e algum espírito empreendedor descobriu que era mais lucrativo atravessar a fronteira ...", grifei

"Começando em escala pequena por volta de 1600, a redução do teor metálico das moedas rapidamente se espalhou depois de 1618, espalhando-se para a Alemanha, Áustria, para a área que se tornaria a Hungria, República Tcheca ... e, de acordo com algumas fontes, para o oriente médio e extremo oriente através da cidade de Lvov, na Rússia", ps 193/4. 

Muitas crises financeiras decorriam do endividamento dos governos com os banqueiros em decorrência dos gastos provenientes das guerras.

No capítulo 3, item 3.3, Kindleberger & Aliber estabelecem o conceito de "Deslocamentos", que será muito útil para nossa análise: 

"Um deslocamento é um evento ou choque externo que muda horizontes, expectativas, oportunidades previstas de lucro, comportamentos - "algum conselho repentino muitas vezes inesperado. [...] Uma mudança nas regulamentações financeiras especialmente liberalizações ou restrições de empréstimos para grupos tomadores de empréstimos, é também um deslocamento:

A guerra é um grande choque. Algumas crises aconteceram imediatamente no começo ou fim de uma guerra, ou logo depois do fim para permitir que algumas poucas expectativas sejam falsificadas. A mais notável crise no início de uma guerra é a de agosto de 1914. Os deslocamentos no fim das guerras incluem as crises de 1713, 1763, 1783, 1816, 1857, 1864, 1873 e 1920.  Além disso, houve uma série impressionante de crises 7 a 10 anos depois do fim de uma guerra ... . Essas incluem as de 1720, 1772, 1792, 1825, 1873 nos Estados Unidos e a de 1929.

Mudanças políticas de longo alcance também podem mudar expectativas. A Revolução Gloriosa de 1688, por exemplo, deu origem a um boom na promoção das companhias.

A Revolução, o Terror, o Diretório, o Consulado e o Império na França em em conjunto com incidentes das próprias Guerras Napoleônicas, iniciaram movimentos em larga escala em 1792-1793 e em 1797, abrindo e fechando mercados na Europa e em outras partes do mundo para os bens britânicos e das colônias", pgs 66/7; os negritos são meus. 

Destaquei os anos em negritos porque se referem ao século XVIII, período em que ocorreram eventos importantes, de grandes turbulências, mormente na sua segunda metade: contestações dos regimes pelos iluministas, Guerra dos Sete Anos (1756), revolução industrial na Inglaterra, Independência dos Estados Unidos, Revolução Francesa, o Terror.
 
Sobre o auge do Iluminismo Jenkins conclui:

"O Iluminismo atingiu o seu auge em 1751 com o início da publicação em Paris, da Enciclopédia de Denis Diderot e Jean le Rond d Alemberr", p. 202.

Ocorreram crises "esporádicas" com as especulações de ações da companhia Mares do Sul e do Mississipi (1720), da Companhia das Índias Orientais (1772), com Tulipas (Holanda, 1636). 

Pelo que consta, a primeira crise genuinamente capitalista ocorreu em 1810 ou em 1825(não há certeza):

Segundo Kindleberger & Aliber:

"A crise britânica de 1810 foi localizada: os exportadores do país exageraram nas vendas ao Brasil e então foram isolados dos seus mercados no Báltico pelo bloqueio continental. Houve ecos dessa crise em Hamburgo e em Nova York", p. 197.  

Nota: O Brasil abriu o mercado para os ingleses em 1808, como consequência das guerras napoleônicas, no que se denominou "Abertura dos portos". 

E segundo o Manual de Economia Política:

"Já no fim do século XVIII e início do século XIX, ocorreram crises parciais de superprodução, que atingiram ramos isolados da indústria. A primeira crise industrial, que abarcou a economia do país em seu conjunto, desencadeou-se na Inglaterra em 1825", capítulo XIV,  "As crises econômicas", item "O caráter cíclico da reprodução capitalista", em https://www.marxistas.org.portugues.  

No Livro IV, Capítulo II, do seu livro "A Riqueza das Nações", p. 438, Adam Smith se refere a "mão invisível", um superpoder natural que regula a economia, que trouxe tantas controvérsias infrutíferas ao longo de mais de dois séculos. 

Segundo o autor:

"Geralmente, na realidade, ele não tenciona promover o interesse público nem sabe até que ponto o está promovendo. Ao preferir fomentar a atividade do país e não de outros países ele tem em vista apenas a sua própria segurança; e orientando sua atividade de tal maneira que sua produção possa ser de maior valor, visa apenas o seu próprio ganho e, neste, como em muitos outros casos, é levado como que por uma mão invisível a promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções. Aliás, nem sempre é pior para a sociedade que esse objetivo faça parte de suas intenções". Ao perseguir seus próprios interesses, o indivíduo muitas vezes promove o interesse da sociedade muito mais eficazmente do que quando tenciona realmente promovê-lo", em Smith - A riqueza das Nações. pdf - Google Docs, https://docs.google.com/viewer?, negrito meu,

Em que pese o próprio relativismo de Smith, "nem sempre é pior", "muitas vezes", pergunta-se onde está a referência às crises? Assim, no próprio texto não existe uma referência a uma mão invisível sempre presente, atuante em todos os momentos para o bem comum.

A concepção de um sistema harmônico, funcionando como uma máquina (mecanismo-maquinismo), que tende naturalmente para o equilíbrio, tal qual a aplicação de uma démarche methodologique tomada de "empréstimo" das ciências naturais, impede o autor de conceber a possibilidade de uma crise verdadeiramente capitalista. Assim, como não percebe o outro lado obscuro e negro do novo sistema, mesmo que visível. Sobre o assunto consultar o artigo já citado "Crítica à economia clássica - démarche, fundamentos, contradições, incoerências -", postado neste blog.

Conclusão

Depois de tudo que foi dito quais as conclusões que podemos chegar?

Adam Smith escreveu "A riqueza das nações", publicou em 1776 e faleceu em 1790. Portanto, escreveu num momento em que se consolidava um novo sistema produtivo. Durante a sua vida não presenciou uma crise genuinamente capitalista. 

Mesmo sendo um gênio, como muitos acreditam, com a sua formação filosófica iluminista e um sistema produtivo incipiente e em expansão, localizado exclusivamente na Inglaterra, seria humanamente impossível detetar todas as falhas e fragilidades desse sistema.
 
Cito Bukhárin:

"De hecho, en tanto que Marx considera "el movimento social como un proceso de la historia natural regido por leis que no sólo son independientes de la voluntad, conciencia humana e inteligencia humana, sino por el contrario, que determinam tal voluntad, conciencia e inteligencia...", em "La economia política del rentista",  PDF, negritos meus.
 
Ou, nas palavras de Japiassu:

"E, quando o poder temporal passa às mãos dos burgueses, estes começam a controlar também o poder espiritual. Nessas condições a Ciência Moderna ou "ocidental" não poderia ter surgido pronta da cabeça de alguns sábios.", em "Como nasceu a ciência moderna", p. 115, negritos meus. 

Enfim, as condições sociais (materiais) de produção determinam o modo de pensar, as ideias e as respectivas ideologias.

Smith não cogita da possibilidade de uma crise exclusivamente capitalista, inerente a este modo de produção. O novo sistema produtivo é perfeito, funciona como uma máquina em equilíbrio com uma regente abstrata denominada mão invisível, equiparada ao Grande Relojoeiro do Universo, que lhe garante a harmonia
 
Mesmo que nesse período tivesse ocorrido uma crise capitalista seria impossível teorizar sobre ela, em vista de sua formação filosófica e por estar dissimulada por diversos outros fatores mais marcantes: guerras, desastres naturais, conflitos ideológicos (nova visão do mundo contra a tradicional).
  
Esta nova ordem econômica coincide parcialmente com o seu ideal iluminista, onde presume-se reina a "liberdade", o maquinismo-mecanismo, a expansão da ciência (que libertará ainda mais o homem), o aumento da produtividade econômica, todos, teoricamente, em prol do progresso da humanidade, um progresso sem senões e harmonioso. Uma utopia que contrasta com a realidade das condições de trabalho em ambientes escuros, não ventilados e insalubres, do trabalho infantil, das horas de trabalho excessivas, dos guetos nas periferias das cidades industriais, da poluição, do desemprego, das crises.    
 
Digo parcialmente, ou em tese, porque nenhum filósofo iluminista conseguiu prever o surgimento de um novo sistema econômico tal qual o capitalismo, com todas as suas virtudes e, no caso, principalmente, suas mazelas. 

As ideias, sempre condicionadas pelas condições materiais (sociais) de existência (não surgem do nada), podem ser o gatilho que viabiliza politicamente mudanças socioeconômicas. Mas, no decorrer dos acontecimentos, as mudanças que elas viabilizam adquirem uma dinâmica própria, impossível de ser contida dentro dos estreitos limites imaginados por seus mentores e teóricos, alargando os conceitos originais diante de novas situações não previstas, muitas vezes distorcendo as ideias originais. A Revolução Francesa nos deu este exemplo, as Revoluções Bolchevique, Maoista, do Camboja (Pol Pot) e outras repetiram e exacerbaram. Do "sonho" iluminista surgiu uma sociedade completamente diferente. 

Algumas ideias já nasceram distorcidas, devaneios que a razão não conseguia perceber e controlar E cada vez que os sonhos não se concretizavam mais se apelava para novos devaneios, todos racionais, que até justificavam extermínios em massa, em nome de um bem racional maior. 

Outras propostas transformadoras já trazem o germe da destruição. As forças transformadoras despertadas se tornam incontroláveis, outras adormecidas despertam e as imprevisíveis surgem. A loucura toma conta da razão. O Nazismo, que abraçou a ideologia do darwinismo-social, da teoria do espaço vital  (Ratzel) e da supremacia racial, continua a ser um do exemplos mais marcantes, que ainda desafia a razão. Como um louco consegue manipular uma nação e levá-la à destruição, com o apoio de intelectuais de renome, juristas, filósofos, sociólogos e outros?

A "razão" é traiçoeira. "O coração tem razões que a própria razão desconhece", Pascal. 
      
Smith, adepto e entusiasta deste novo sistema fica  aprisionado em sua ideologia iluminista de liberdade, louva a nova divisão social do trabalho ditada pelas máquinas sem tirar conclusões (como seria óbvio) dos efeitos da monotonia sobre o psiquismo dos trabalhadores, assunto que seria abordado por Marx e, posteriormente, pela psicologia, tão bem retratada por Chaplin em "Tempos Modernos". 

Contrariando os ideais iluministas de liberdade o novo sistema produtivo transformou o "homem" num apêndice das máquinas, que lhe ditam os ritmos de produção, tornando-o seu servo. 
 
Diante desta falta de referência de uma crise, da impossibilidade de concebê-la teoricamente, em razão destes diversos fatores, existe a possibilidade de a mão invisível estar muito mais próxima de uma visão histórica progressista da humanidade; em que o novo sistema se apresenta como uma evolução, indiscutivelmente, muito superior aos sistemas socioeconômicos das sociedades anteriores.
 
Economistas clássicos e afins pinçaram num livro de 475 páginas um simples termo e transformaram a mão invisível em um dogma que se propaga por mais de dois séculos. Um verdadeiro non sensi, uma falta de criatividade, visto que há muito filósofos, historiadores e demais cientistas sociais já colocaram à disposição os meios para contestá-la. 

Desprezando todo este contexto, economistas e matemáticos se lançaram num verdadeiro frenesi em busca de uma comprovação da eficácia da mão invisível, criando modelos sofisticados para comprová-la ou rejeitá-la. Assim, um conceito não matemático ficou passível de comprovação apenas pela matemática, refletindo um processo que já vinha se delineando a partir do início do século XX. Um assunto que se refere a métodos, conceitos, história e, além de tudo, bom senso ficou sujeito a matematização da economia. Uma verdadeira loucura com perda de tempo e recursos que mostra a irracionalidade dos gênios racionais, enfim uma inutilidade. Esqueceram que os modelos dependem de seus pressupostos. 

Segundo Ha-Joon Chang:

"A história é útil para destacar os limites da teoria econômica. [...] e a história oferece-nos muitas experiências econômicas bem sucedidas (a todos os níveis nações, empresas, indivíduos) que não podem ser explicadas através de uma qualquer teoria econômica única", em "Economia", p. 43.

Bondade do autor. Acredito mesmo que não possa ser explicada por uma teoria econômica tão desconectada da realidade, com abstrações absurdas. 

Fico imaginando os recursos que foram desperdiçados com salários, infraestruturas e crises; e que poderiam ter sido canalizados em prol de "verdadeiras" ciências para melhorar as condições de vida da humanidade, tanto no trabalho como no lazer, nos poupando ainda dos problemas ecológicos e ambientais. Esta concepção (abordagem), juntamente com a ficção do homo economicus, acerbaram os problemas e lançaram a humanidade em uma nova obscuridade. Tudo isto para comprovar a existência de uma mão invisível.  

Convém lembrar que não foi por acaso que o Long-Term Capital Management (LTCM), do qual faziam parte Robert Merton e Myron Scholes, agraciados com o Prêmio Nobel 1997, com seus modelos de matematização, entrou em falência.
 
E Alan Greenspan, adepto dos mercados perfeitos, depois de comandar por anos a euforia do mercado bolsista fez uma tímida mea culpa, mas se livrou das responsabilidades.
 
Será o ser humano tão racional quanto nos querem fazer acreditar os economistas clássicos? Onde se situa o homo economicus? Eles mesmo não encontraram.
 
Para finalizar estes 3 artigos, concluo que é inevitável reconhecer que a "racionalidade iluminista" não alcançou os seus propósitos, os objetivos mais nobres. Falhou ao depositar demasiadas esperanças e promessas nas liberdades políticas formais, na ciência e, principalmente, na razão, dentre outras, como se fossem um apanágio para o ser humano se libertar dos grilhões que o aprisionavam.
 
A partir de início do século XIX as crises econômicas genuinamente capitalistas (digo de mercado) e financeiras vieram se instalar definitivamente no mundo desenvolvido; atravessam fronteiras através do contágio, a pobreza grassa nos grandes centros industriais e nos países retardatários, os fossos ente estes e os países desenvolvidos aumentam, a ciência não trouxe os resultados esperados, os grilhões que aprisionavam o ser humano foram substituídos por novas formas, não imaginadas (o que seria natural), transformando o ser humano num apêndice, num servo, das máquinas e da ciência; as guerras pela hegemonia política e econômica passaram a ter o respaldo das ciências, que, por sinal, supunha-se iria nos libertar; enfim, não curou as doenças do espírito. 

Tal qual, as promessas socialistas que vieram lhe contrapor, também fundamentadas na razão, considerada única e ilimitada, mostraram que os devaneios, mesmo quando recheados de boas intenções, nos levam a situações que a razão não previra e não conseguem resolver, de imediato ou nunca. 

Conforme Damásio, p. 314:
 
"Esta abordagem veria como tolice ou mesmo loucura a ideia da razão dever assumir o controlo, uma ideia que mais não é do que o resíduo dos piores excessos de racionalismo: mas esta abordagem também rejeitaria a noção de que nos devemos limitar a promover as recomendações das emoções - ... -, sem que as filtrássemos pelo conhecimento e pela razão", itálicos meus.  

Por fim cabe a pergunta: Se Smith foi incapaz de analisar muitos destes efeitos visíveis do capitalismo nascente como seria capaz de teorizar sobre uma crise que não presenciou ou mesmo admiti-la teoricamente, em contradição com a sua ideologia iluminista? 
 
Vaidade de vaidades! Tudo é vaidade (Eclesiastes 1). 

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

Almeida, Luis Bigotte:

"A educação dos genes", Climepsi Editores, 4ª ed., 2018;

"Introdução à neurociência", Climepsi Editores, 2ª ed., 2018, caps 11/3,Conclusáo; 
     
Berthochi, Aparecido Francisco, " A crítica de Bukhárin à economia política do rentista", em https:// baixardoc.com/preview/a...;

Carvalho, José Eduardo, "Neuroeconomia - Ensaio sobre a sociobiologia do comportamento -", Edições Sílabo, 1ª ed., 2009;

Chang, Ha-Joon, "Economia", Clube do Autor, 1ª ed., 2016;

Damásio, António, "A estranha ordem das coisas - a vida os sentimentos e as culturas humanas -", Temas e Debates - Círculo de Leitores, reimpressão outubro de 2020; 

Davidson, Paul, "John Maynard Keynes", Atual Editora, junho 2010;

Japiassu, Hilton:
 
- "Como nasceu a ciência moderna", Imago, 2006;

- "A crise das ciências humanas", Cortez Editora, 2012.

Japiassu, Hilton & Marcondes, Danilo, "Dicionário básico de filosofia", Jorge Zaar Editores, 2001; 

Jenkins, Simon: 
  • "Breve história da Europa - de Péricles a Putin", Editorial Presença, Lisboa, 2019
  •  "Breve história da Inglaterra", A Esfera dos Livros, 1ª ed. janeiro 2021;
Kindleberger, Charleie P. & Aliber, Tobert Z., "Manias, pânicos e crises - a história das catástrofes econômicas mundiais -", Editora Saraiva, SP, 6 ª Edição;

Keynes; John Maynard, "Teoria geral do juro, do emprego e da moeda", 

Louçã, Francisco & Mortágua, Mariana, "Manuel de economia política", Bertrand Editora, Lisboa;

Macdonald, Lawrence G, "Uma colossal falta de bom senso", Ed. Record, 2010; 

Mlodinow, Leonard, "Subliminar". Ed. Zahar, 2012;

Paulo, Sávio Freitas, "O método dialético em debate: considerações sobre a dialética da natureza a partir das contribuições de Engls e de Luckács", em https://www. niepmarx.blog.br. 
   


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