sábado, 22 de janeiro de 2022

UMA CRÍTICA À ECONOMIA CLÁSSICA

Continuação: 3ª Parte

Igac nº 151/2022

AS CRISES E A MÃO INVISÍVEL DE ADAM SMITH

- No contexto histórico-social, filosófico, ideológico e político -


Introdução

No artigo "Crítica à economia clássica - démarche, fundamentos, contradições, incoerências -" comentei que a mão invisível de Adam Smith é a consequência dos approachs metodológicos utilizados pela economia clássica, tomados por "empréstimos" das ciências  naturais, se assemelhando ao Grande Relojoeiro, responsável pela harmonia do universo. 

Este artigo visa aprofundar, estabelecer e analisar as razões e as condições históricas, sociais e ideológicas que influenciaram a concepção desta mão invisível, como reguladora da economia, assuntos desprezados pelos teóricos da economia clássica, que se satisfazem apenas em repeti-la como uma verdade incontestável, em todas e quaisquer ocasiões, sem uma análise de suas consequências. 

Na parte final do artigo tento extrair do próprio texto em que Smith faz alusão à mão invisível uma outra possível interpretação, diferente da tradicional.

Este artigo não traz considerações sobre as relações internacionais, o período da Pax-Britânica, momento em que a Grâ-Bretanha consolida e expande o seu poder econômico-político-social e, como consequência, seu modelo teórico-ideológico do liberalismo econômico, à sua feição e em benefício próprio, com a "Teoria das Vantagens Comparativas", de David Ricardo. (Sobre o assunto consultar "A ideologia das vantagens comparativas", junho de 2014, neste blog).

Desnecessário dizer que após o declínio britânico os EUA substituíram e assumiram a posição para difundir, aprofundar e implementar politicamente a ideologia do liberalismo econômico no mundo. 

Os diversos contextos
 
Nossa história começa com a decadência do sistema feudal e com o surgimento de novas de economias monárquicas absolutistas, que irão possibilitar, concomitantemente, as condições "materiais" para o surgimento das ciências naturais, cuja metodologia trará uma nova visão de mundo. 

Como surge esta nova visão de mundo é uma questão não consensual entre os diversos "cientistas" sociais.

Cito Japiassu:

"Para compreendermos melhor as condições sócio-histórico-culturais em que a Ciência Moderna se constituiu e se desenvolveu, lembremos que a burguesia ascendente, independentemente de seu projeto estritamente econômico-político, suscita uma nova apropriação do mundo sob a forma de uma nova ciência. [...] Mediações socioculturais também desempenharam um papel importante. As mais importantes foram o realismo e o racionalismo próprios aos novos empreendedores. Na formação desse realismo e desse racionalismo, as práticas e os hábitos mentais típicos do capitalismo tiveram um papel relevante. Em seguida, essas atitudes adquiriram dignidade cultural própria e difundiram-se em todos os setores da vida social. Numa palavra, as mudanças econômicas e sociais que culminaram com a instauração do sistema capitalista são inseparáveis de uma mudança de mentalidade. E quando o poder temporal passa para as mãos dos burgueses, estes passam a controlar também o poder espiritual. Nessas condições, a Ciência Moderna ou "ocidental" não poderia ter surgido da cabeça de alguns sábios. Foi um produto genuinamente sócio-histórico-cultural", em "Como nasceu a ciência moderna", p. 115, negritos meus. 

Fixado este ponto de vista, Galileu Galilei (1564-1642), considerado o pai da Ciência Moderna, irá iniciar as suas pesquisas científicas que entrarão em choque para a concepção tradicional, sob a tutela da Igreja Católica. 

No artigo "Crítica à teoria econômica clássica - approachs, fundamentos, incoerências -", postado neste blog, procurei esclarecer os fundamentos deste saber e as suas repercussões sobre as ciências sociais e, em particular, a economia.  

Portanto, a desintegração do sistema feudal se dá em diversas frentes, num processo lento que, sem dúvidas, passa por uma luta pelo poder.
 
Na Inglaterra a contestação ao poder monárquico absolutista culmina com a assinatura da Carta Magna, por João "sem terra" (1216) e irá se prolongar até a Revolução Gloriosa de 1688/9, prenúncio da Revolução Francesa (1789).
 
Mas, é particularmente no século XVIII que surgem as grandes contestações sob a orientação dos filósofos iluministas, dentre os quais se destacam: David Hume (1711-1776), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Voltaire (1694-1778), Immanuel Kant (1724-1804), Diderot (1713-1784), Montesquieu (1689-1755) e como não poderia deixar de ser Adam Smith (1723-1790).

Sobre o Iluminismo, Japiassu & Marcondes afirmam:

"Movimento filosófico também conhecido como Esclarecimento, Ilustração ou Século das Luzes, que se desenvolve particularmente na França, Alemanha e Inglaterra no século XVIII, caracterizando-se pela defesa da ciência e da racionalidade crítica, contra a fé, a superstição, e o dogma religioso. Na verdade, o Iluminismo é muito mais do que um movimento filosófico, tendo uma dimensão literária, artística e política. No plano político, o Iluminismo defende as liberdades individuais e os direitos dos cidadãos contra o autoritarismo e o abuso do poder", em "Dicionário básico de filosofia", itálicos meus.

E Jenkins:

"As suas raízes residiam no racionalismo do filósofo francês René Descartes (1632-1650) e no pai do liberalismo britânico John Locke (1632-1704)... . Procurou inspiração na revolução científica associada à Royal Society de Londres e nos trabalhos de Robert Boyle, na química", p. 201.

Enfim, o Iluminismo acreditava que o futuro da humanidade contra o autoritarismo e o servilismo estaria na racionalidade do conhecimento científico e na liberdade, condições para que o ser humano se libertasse de todos os grilhões que o aprisionavam. Que através da ciência e da liberdade seria possível eliminar a pobreza e demais mazelas que acompanham o ser humano em sua história.
 
Influenciou os líderes americanos da Independência dos Estados Unidos da América (1776) sob os ideais de "liberdade" no seu sentido lato, direito natural, nato, inseparável e inalienável do ser humano, incluindo a liberdade de escolher o governante e destituí-lo, de vir e ir, de pensamento, de expressão, de imprensa, e de igualdade perante a lei. 

Afora estas contestações, o século XVIII, mormente no seu último quartel, foi um período turbulento da história, com a ocorrência de dois fatos políticos marcantes que irão repercutir nos destinos de diversos sistemas sócio-políticos na Europa. Em 1776 ocorre a Independência dos Estados Unidos da América, com a adoção de um sistema democrático republicano, de acordo com os ideais libertários, que terá grande repercussão no mundo. Poucos anos depois, sob as ideias iluministas irrompe a Revolução Francesa (1789), com os lemas liberté, igualité, fraternité, seguindo o Período do Terror (1793), surgindo após estes anos o momento propício para a ascensão de Napoleão ao poder (1799). A seguir viriam as Guerras Napoleônicas (1803). Os períodos anteriores a estes acontecimentos também não devem ser menosprezados.

Jenkins nos dá uma panorama destes períodos que desencadearam estes eventos, com relação a Independência e suas consequências na Europa, principalmente, na França antes da Revolução Francesa:
 
"A Guerra de Independência dos EUA foi o primeiro exemplo prático dos princípios do Iluminismo de igualdade e liberdade de ação. [...] Foi a aplicação prática do trabalho amplamente divulgado de Rousseau, O Contrato Social, de 1762".

"A França, contudo, considerava-se mais progressista, a fonte do pensamento do pensamento novo. Esta situação havia ajudado os rebeldes e o seu general, Lafayette, entregou-lhes o comando militar. Por isso Paris ferveu em debate. [...] Em 1780, Luís implementaria reformas parciais, suavizando a censura, abolindo a tortura judicial e a servidão".

"No decênio de 1780 a França caminhava para a bancarrota. O país sofria com a deficiência das colheitas e com a fome  e esta medida (o autor se refere a proposta de um imposto, por Jacques Necker) enfrentou tumultos imediatos", p. 209. 

A Guerra dos Sete Anos contra a Grã Bretanha (1756) teve como consequência a "perda das possessões coloniais da América do Norte", tendo como consequência o apoio financeiro e militar francês aos rebeles americanos na luta pela independência. Este apoio endividou severamente o governo, (Revolução Francesa - Wikipédia, a enciclopédia livre, em https://pt,wikipedia,org). 

Ao mesmo tempo, na Inglaterra ocorre a revolução industrial (não existe concordância das datas: 1760, 1780 para Eric Hobsbawm, entre 1760 e 1830 para outros), que consolida o capitalismo como sistema de produção (modo de produção) dominante, com grandes mudanças tecnológicas no processo produtivo, conduzido por máquinas, com o auxílio da ciência. Entretanto, como Smith escreveu "A Riqueza das Nações", 1776, presume-se que o capitalismo já tinha se consolidado como modo de produção dominante.  

Smith, considerado o "fundador da economia política "liberal"" (Japiassu) era um filósofo iluminista e, como tal, partilhava das concepções iluministas, da liberdade e fé na ciência. A sua visão de mundo baseava-se numa concepção naturalista, por influência das metodologias das ciências naturais. 

Portanto, na época em que Smith escreveu "A Riqueza das Nações", publicado em 1776, o capitalismo era um sistema de produção incipiente, sendo impossível que uma pessoa com sua formação intelectual percebesse todas as suas "fragilidades" e deficiências. Era, antes de tudo, um filósofo iluminista, adepto e entusiasta do novo regime. Além disto, este novo sistema vinha substituir um antigo que já vinha sendo posto em cheque há bastante tempo, pelo menos na Inglaterra. E, sem dúvidas, um sistema economicamente mais eficiente, que tinha colocado a ciência em prol da produção.

Antes do surgimento da economia capitalista, da revolução industrial, as crises econômicas ocorriam principalmente em decorrência de catástrofes naturais, de guerras (inclusive religiosas) que traziam problemas financeiros aos Estados e, em poucos casos, por especulação com moedas e commodities, especulação que não era específica e tipicamente do modo de produção capitalista:                                                                                          

Conforme Kindleberger & Aliber:

"A história das crises financeiras começou com o dinheiro metálico: o crédito dos bancos ou outros financiadores não foi envolvido. Príncipes, abades, bispos e até mesmo o Sacro Imperador Romano reduziram a cunhagem de moedas secundárias usadas nas transações diárias (mas não as de prata e ouro de denominações maiores), aumentando a denominação das já existentes, substituindo a base por bons metais e reduzindo o conteúdo metálico delas para também diminuir a diferença entre o custo de produção das moedas e seu valor nominal, em preparação para a Guerra dos Trinta Anos, iniciada em 1618. A redução da quantidade de metal ocorreu somente em seus próprios territórios, e algum espírito empreendedor descobriu que era mais lucrativo atravessar a fronteira ...", grifei

"Começando em escala pequena por volta de 1600, a redução do teor metálico das moedas rapidamente se espalhou depois de 1618, espalhando-se para a Alemanha, Áustria, para a área que se tornaria a Hungria, República Tcheca ... e, de acordo com algumas fontes, para o oriente médio e extremo oriente através da cidade de Lvov, na Rússia", ps 193/4. 

Muitas crises financeiras decorriam do endividamento dos governos com os banqueiros em decorrência dos gastos provenientes das guerras.

No capítulo 3, item 3.3, Kindleberger & Aliber estabelecem o conceito de "Deslocamentos", que será muito útil para nossa análise: 

"Um deslocamento é um evento ou choque externo que muda horizontes, expectativas, oportunidades previstas de lucro, comportamentos - "algum conselho repentino muitas vezes inesperado. [...] Uma mudança nas regulamentações financeiras especialmente liberalizações ou restrições de empréstimos para grupos tomadores de empréstimos, é também um deslocamento:

A guerra é um grande choque. Algumas crises aconteceram imediatamente no começo ou fim de uma guerra, ou logo depois do fim para permitir que algumas poucas expectativas sejam falsificadas. A mais notável crise no início de uma guerra é a de agosto de 1914. Os deslocamentos no fim das guerras incluem as crises de 1713, 1763, 1783, 1816, 1857, 1864, 1873 e 1920.  Além disso, houve uma série impressionante de crises 7 a 10 anos depois do fim de uma guerra ... . Essas incluem as de 1720, 1772, 1792, 1825, 1873 nos Estados Unidos e a de 1929.

Mudanças políticas de longo alcance também podem mudar expectativas. A Revolução Gloriosa de 1688, por exemplo, deu origem a um boom na promoção das companhias.

A Revolução, o Terror, o Diretório, o Consulado e o Império na França em em conjunto com incidentes das próprias Guerras Napoleônicas, iniciaram movimentos em larga escala em 1792-1793 e em 1797, abrindo e fechando mercados na Europa e em outras partes do mundo para os bens britânicos e das colônias", pgs 66/7; os negritos são meus. 

Destaquei os anos em negritos porque se referem ao século XVIII, período em que ocorreram eventos importantes, de grandes turbulências, mormente na sua segunda metade: contestações dos regimes pelos iluministas, Guerra dos Sete Anos (1756), revolução industrial na Inglaterra, Independência dos Estados Unidos, Revolução Francesa, o Terror.
 
Sobre o auge do Iluminismo Jenkins conclui:

"O Iluminismo atingiu o seu auge em 1751 com o início da publicação em Paris, da Enciclopédia de Denis Diderot e Jean le Rond d Alemberr", p. 202.

Ocorreram crises "esporádicas" com as especulações de ações da companhia Mares do Sul e do Mississipi (1720), da Companhia das Índias Orientais (1772), com Tulipas (Holanda, 1636). 

Pelo que consta, a primeira crise genuinamente capitalista ocorreu em 1810 ou em 1825(não há certeza):

Segundo Kindleberger & Aliber:

"A crise britânica de 1810 foi localizada: os exportadores do país exageraram nas vendas ao Brasil e então foram isolados dos seus mercados no Báltico pelo bloqueio continental. Houve ecos dessa crise em Hamburgo e em Nova York", p. 197.  

Nota: O Brasil abriu o mercado para os ingleses em 1808, como consequência das guerras napoleônicas, no que se denominou "Abertura dos portos". 

E segundo o Manual de Economia Política:

"Já no fim do século XVIII e início do século XIX, ocorreram crises parciais de superprodução, que atingiram ramos isolados da indústria. A primeira crise industrial, que abarcou a economia do país em seu conjunto, desencadeou-se na Inglaterra em 1825", capítulo XIV,  "As crises econômicas", item "O caráter cíclico da reprodução capitalista", em https://www.marxistas.org.portugues.  

No Livro IV, Capítulo II, do seu livro "A Riqueza das Nações", p. 438, Adam Smith se refere a "mão invisível", um superpoder natural que regula a economia, que trouxe tantas controvérsias infrutíferas ao longo de mais de dois séculos. 

Segundo o autor:

"Geralmente, na realidade, ele não tenciona promover o interesse público nem sabe até que ponto o está promovendo. Ao preferir fomentar a atividade do país e não de outros países ele tem em vista apenas a sua própria segurança; e orientando sua atividade de tal maneira que sua produção possa ser de maior valor, visa apenas o seu próprio ganho e, neste, como em muitos outros casos, é levado como que por uma mão invisível a promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções. Aliás, nem sempre é pior para a sociedade que esse objetivo faça parte de suas intenções". Ao perseguir seus próprios interesses, o indivíduo muitas vezes promove o interesse da sociedade muito mais eficazmente do que quando tenciona realmente promovê-lo", em Smith - A riqueza das Nações. pdf - Google Docs, https://docs.google.com/viewer?, negrito meu,

Em que pese o próprio relativismo de Smith, "nem sempre é pior", "muitas vezes", pergunta-se onde está a referência às crises? Assim, no próprio texto não existe uma referência a uma mão invisível sempre presente, atuante em todos os momentos para o bem comum.

A concepção de um sistema harmônico, funcionando como uma máquina (mecanismo-maquinismo), que tende naturalmente para o equilíbrio, tal qual a aplicação de uma démarche methodologique tomada de "empréstimo" das ciências naturais, impede o autor de conceber a possibilidade de uma crise verdadeiramente capitalista. Assim, como não percebe o outro lado obscuro e negro do novo sistema, mesmo que visível. Sobre o assunto consultar o artigo já citado "Crítica à economia clássica - démarche, fundamentos, contradições, incoerências -", postado neste blog.

Conclusão

Depois de tudo que foi dito quais as conclusões que podemos chegar?

Adam Smith escreveu "A riqueza das nações", publicou em 1776 e faleceu em 1790. Portanto, escreveu num momento em que se consolidava um novo sistema produtivo. Durante a sua vida não presenciou uma crise genuinamente capitalista. 

Mesmo sendo um gênio, como muitos acreditam, com a sua formação filosófica iluminista e um sistema produtivo incipiente e em expansão, localizado exclusivamente na Inglaterra, seria humanamente impossível detetar todas as falhas e fragilidades desse sistema.
 
Cito Bukhárin:

"De hecho, en tanto que Marx considera "el movimento social como un proceso de la historia natural regido por leis que no sólo son independientes de la voluntad, conciencia humana e inteligencia humana, sino por el contrario, que determinam tal voluntad, conciencia e inteligencia...", em "La economia política del rentista",  PDF, negritos meus.
 
Ou, nas palavras de Japiassu:

"E, quando o poder temporal passa às mãos dos burgueses, estes começam a controlar também o poder espiritual. Nessas condições a Ciência Moderna ou "ocidental" não poderia ter surgido pronta da cabeça de alguns sábios.", em "Como nasceu a ciência moderna", p. 115, negritos meus. 

Enfim, as condições sociais (materiais) de produção determinam o modo de pensar, as ideias e as respectivas ideologias.

Smith não cogita da possibilidade de uma crise exclusivamente capitalista, inerente a este modo de produção. O novo sistema produtivo é perfeito, funciona como uma máquina em equilíbrio com uma regente abstrata denominada mão invisível, equiparada ao Grande Relojoeiro do Universo, que lhe garante a harmonia
 
Mesmo que nesse período tivesse ocorrido uma crise capitalista seria impossível teorizar sobre ela, em vista de sua formação filosófica e por estar dissimulada por diversos outros fatores mais marcantes: guerras, desastres naturais, conflitos ideológicos (nova visão do mundo contra a tradicional).
  
Esta nova ordem econômica coincide parcialmente com o seu ideal iluminista, onde presume-se reina a "liberdade", o maquinismo-mecanismo, a expansão da ciência (que libertará ainda mais o homem), o aumento da produtividade econômica, todos, teoricamente, em prol do progresso da humanidade, um progresso sem senões e harmonioso. Uma utopia que contrasta com a realidade das condições de trabalho em ambientes escuros, não ventilados e insalubres, do trabalho infantil, das horas de trabalho excessivas, dos guetos nas periferias das cidades industriais, da poluição, do desemprego, das crises.    
 
Digo parcialmente, ou em tese, porque nenhum filósofo iluminista conseguiu prever o surgimento de um novo sistema econômico tal qual o capitalismo, com todas as suas virtudes e, no caso, principalmente, suas mazelas. 

As ideias, sempre condicionadas pelas condições materiais (sociais) de existência (não surgem do nada), podem ser o gatilho que viabiliza politicamente mudanças socioeconômicas. Mas, no decorrer dos acontecimentos, as mudanças que elas viabilizam adquirem uma dinâmica própria, impossível de ser contida dentro dos estreitos limites imaginados por seus mentores e teóricos, alargando os conceitos originais diante de novas situações não previstas, muitas vezes distorcendo as ideias originais. A Revolução Francesa nos deu este exemplo, as Revoluções Bolchevique, Maoista, do Camboja (Pol Pot) e outras repetiram e exacerbaram. Do "sonho" iluminista surgiu uma sociedade completamente diferente. 

Algumas ideias já nasceram distorcidas, devaneios que a razão não conseguia perceber e controlar E cada vez que os sonhos não se concretizavam mais se apelava para novos devaneios, todos racionais, que até justificavam extermínios em massa, em nome de um bem racional maior. 

Outras propostas transformadoras já trazem o germe da destruição. As forças transformadoras despertadas se tornam incontroláveis, outras adormecidas despertam e as imprevisíveis surgem. A loucura toma conta da razão. O Nazismo, que abraçou a ideologia do darwinismo-social, da teoria do espaço vital  (Ratzel) e da supremacia racial, continua a ser um do exemplos mais marcantes, que ainda desafia a razão. Como um louco consegue manipular uma nação e levá-la à destruição, com o apoio de intelectuais de renome, juristas, filósofos, sociólogos e outros?

A "razão" é traiçoeira. "O coração tem razões que a própria razão desconhece", Pascal. 
      
Smith, adepto e entusiasta deste novo sistema fica  aprisionado em sua ideologia iluminista de liberdade, louva a nova divisão social do trabalho ditada pelas máquinas sem tirar conclusões (como seria óbvio) dos efeitos da monotonia sobre o psiquismo dos trabalhadores, assunto que seria abordado por Marx e, posteriormente, pela psicologia, tão bem retratada por Chaplin em "Tempos Modernos". 

Contrariando os ideais iluministas de liberdade o novo sistema produtivo transformou o "homem" num apêndice das máquinas, que lhe ditam os ritmos de produção, tornando-o seu servo. 
 
Diante desta falta de referência de uma crise, da impossibilidade de concebê-la teoricamente, em razão destes diversos fatores, existe a possibilidade de a mão invisível estar muito mais próxima de uma visão histórica progressista da humanidade; em que o novo sistema se apresenta como uma evolução, indiscutivelmente, muito superior aos sistemas socioeconômicos das sociedades anteriores.
 
Economistas clássicos e afins pinçaram num livro de 475 páginas um simples termo e transformaram a mão invisível em um dogma que se propaga por mais de dois séculos. Um verdadeiro non sensi, uma falta de criatividade, visto que há muito filósofos, historiadores e demais cientistas sociais já colocaram à disposição os meios para contestá-la. 

Desprezando todo este contexto, economistas e matemáticos se lançaram num verdadeiro frenesi em busca de uma comprovação da eficácia da mão invisível, criando modelos sofisticados para comprová-la ou rejeitá-la. Assim, um conceito não matemático ficou passível de comprovação apenas pela matemática, refletindo um processo que já vinha se delineando a partir do início do século XX. Um assunto que se refere a métodos, conceitos, história e, além de tudo, bom senso ficou sujeito a matematização da economia. Uma verdadeira loucura com perda de tempo e recursos que mostra a irracionalidade dos gênios racionais, enfim uma inutilidade. Esqueceram que os modelos dependem de seus pressupostos. 

Segundo Ha-Joon Chang:

"A história é útil para destacar os limites da teoria econômica. [...] e a história oferece-nos muitas experiências econômicas bem sucedidas (a todos os níveis nações, empresas, indivíduos) que não podem ser explicadas através de uma qualquer teoria econômica única", em "Economia", p. 43.

Bondade do autor. Acredito mesmo que não possa ser explicada por uma teoria econômica tão desconectada da realidade, com abstrações absurdas. 

Fico imaginando os recursos que foram desperdiçados com salários, infraestruturas e crises; e que poderiam ter sido canalizados em prol de "verdadeiras" ciências para melhorar as condições de vida da humanidade, tanto no trabalho como no lazer, nos poupando ainda dos problemas ecológicos e ambientais. Esta concepção (abordagem), juntamente com a ficção do homo economicus, acerbaram os problemas e lançaram a humanidade em uma nova obscuridade. Tudo isto para comprovar a existência de uma mão invisível.  

Convém lembrar que não foi por acaso que o Long-Term Capital Management (LTCM), do qual faziam parte Robert Merton e Myron Scholes, agraciados com o Prêmio Nobel 1997, com seus modelos de matematização, entrou em falência.
 
E Alan Greenspan, adepto dos mercados perfeitos, depois de comandar por anos a euforia do mercado bolsista fez uma tímida mea culpa, mas se livrou das responsabilidades.
 
Será o ser humano tão racional quanto nos querem fazer acreditar os economistas clássicos? Onde se situa o homo economicus? Eles mesmo não encontraram.
 
Para finalizar estes 3 artigos, concluo que é inevitável reconhecer que a "racionalidade iluminista" não alcançou os seus propósitos, os objetivos mais nobres. Falhou ao depositar demasiadas esperanças e promessas nas liberdades políticas formais, na ciência e, principalmente, na razão, dentre outras, como se fossem um apanágio para o ser humano se libertar dos grilhões que o aprisionavam.
 
A partir de início do século XIX as crises econômicas genuinamente capitalistas (digo de mercado) e financeiras vieram se instalar definitivamente no mundo desenvolvido; atravessam fronteiras através do contágio, a pobreza grassa nos grandes centros industriais e nos países retardatários, os fossos ente estes e os países desenvolvidos aumentam, a ciência não trouxe os resultados esperados, os grilhões que aprisionavam o ser humano foram substituídos por novas formas, não imaginadas (o que seria natural), transformando o ser humano num apêndice, num servo, das máquinas e da ciência; as guerras pela hegemonia política e econômica passaram a ter o respaldo das ciências, que, por sinal, supunha-se iria nos libertar; enfim, não curou as doenças do espírito. 

Tal qual, as promessas socialistas que vieram lhe contrapor, também fundamentadas na razão, considerada única e ilimitada, mostraram que os devaneios, mesmo quando recheados de boas intenções, nos levam a situações que a razão não previra e não conseguem resolver, de imediato ou nunca. 

Conforme Damásio, p. 314:
 
"Esta abordagem veria como tolice ou mesmo loucura a ideia da razão dever assumir o controlo, uma ideia que mais não é do que o resíduo dos piores excessos de racionalismo: mas esta abordagem também rejeitaria a noção de que nos devemos limitar a promover as recomendações das emoções - ... -, sem que as filtrássemos pelo conhecimento e pela razão", itálicos meus.  

Por fim cabe a pergunta: Se Smith foi incapaz de analisar muitos destes efeitos visíveis do capitalismo nascente como seria capaz de teorizar sobre uma crise que não presenciou ou mesmo admiti-la teoricamente, em contradição com a sua ideologia iluminista? 
 
Vaidade de vaidades! Tudo é vaidade (Eclesiastes 1). 

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

Almeida, Luis Bigotte:

"A educação dos genes", Climepsi Editores, 4ª ed., 2018;

"Introdução à neurociência", Climepsi Editores, 2ª ed., 2018, caps 11/3,Conclusáo; 
     
Berthochi, Aparecido Francisco, " A crítica de Bukhárin à economia política do rentista", em https:// baixardoc.com/preview/a...;

Carvalho, José Eduardo, "Neuroeconomia - Ensaio sobre a sociobiologia do comportamento -", Edições Sílabo, 1ª ed., 2009;

Chang, Ha-Joon, "Economia", Clube do Autor, 1ª ed., 2016;

Damásio, António, "A estranha ordem das coisas - a vida os sentimentos e as culturas humanas -", Temas e Debates - Círculo de Leitores, reimpressão outubro de 2020; 

Davidson, Paul, "John Maynard Keynes", Atual Editora, junho 2010;

Japiassu, Hilton:
 
- "Como nasceu a ciência moderna", Imago, 2006;

- "A crise das ciências humanas", Cortez Editora, 2012.

Japiassu, Hilton & Marcondes, Danilo, "Dicionário básico de filosofia", Jorge Zaar Editores, 2001; 

Jenkins, Simon: 
  • "Breve história da Europa - de Péricles a Putin", Editorial Presença, Lisboa, 2019
  •  "Breve história da Inglaterra", A Esfera dos Livros, 1ª ed. janeiro 2021;
Kindleberger, Charleie P. & Aliber, Tobert Z., "Manias, pânicos e crises - a história das catástrofes econômicas mundiais -", Editora Saraiva, SP, 6 ª Edição;

Keynes; John Maynard, "Teoria geral do juro, do emprego e da moeda", 

Louçã, Francisco & Mortágua, Mariana, "Manuel de economia política", Bertrand Editora, Lisboa;

Macdonald, Lawrence G, "Uma colossal falta de bom senso", Ed. Record, 2010; 

Mlodinow, Leonard, "Subliminar". Ed. Zahar, 2012;

Paulo, Sávio Freitas, "O método dialético em debate: considerações sobre a dialética da natureza a partir das contribuições de Engls e de Luckács", em https://www. niepmarx.blog.br. 
   


sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

UMA CRÍTICA À ECONOMIA CLÁSSICA

Continuação 2ª parte:                                                                        Igac nº 151/2022

                                 


CRÍTICA À ECONOMIA UTILITARISTA DO CONSUMIDOR 

 -teoria dos preços com fundamento em Bohm-Bawerk-


Introdução

Em certo sentido, este segundo artigo é uma continuação do artigo anterior. Depois de questionar os methologicals approachs da economia clássica, que a levam para conclusões incoerentes, fazia-se necessário adentrar nos pormenores da própria teoria, construídos sob o enfoque das referidas metodologias. 

Tentarei demonstrar ao longo deste artigo as incoerências e fragilidades teóricas da microeconômica clássica marginalista questionando os pilares de suas "construções" teóricas. 

No artigo anterior demonstrei as consequências de uma visão do mundo que pretendia determinar as leis da sociedade capitalista partindo de uma análise do comportamento individual dos agentes econômicos. 

Sob os ataques dos socialistas marxistas, que apontavam a miséria dos assalariados proletários e questionavam através da apropriação da mais valia (lucro, no sentido vulgar), a "justiça" das relações sociais, os economistas clássicos precisavam construir uma teoria mais detalhista que demonstrasse que tais relações eram naturais, objetivas, e, de certa forma, independentes das "vontades" dos agentes econômicos. 

Os agentes econômicos se comportando de acordo com a sua "natureza" de homo economicus não poderiam interferir nessas leis objetivas, de acordo com as suas vontades, sob pena de trazer danos ao funcionamento da economia (ver artigo anterior).

Como se davam as formações dessas diversas leis objetivas, a partir de um somatório de comportamentos individuais naturais do homo economicus era uma questão que requeria uma solução.

Entretanto, os diversos approachs metodológicos que eram as diretrizes gerais, os guias, não eram suficientes para resolver as detalhes mais específicos, relativos à própria teoria, e as questões e críticas colocadas pelos socialistas e marxistas, principalmente no tocante a distribuição da renda (apropriação da mais valia), considerada sempre justa pelos economistas clássicos, posto que determinada por "leis objetivas", que passavam pela formação dos salários e preços. 

Nesse clima, coube à Escola Austríaca propor uma solução alternativa para cobrir esta lacuna, com uma teoria sobre a formação dos salários e dos preços, que, de certa forma, pretendia justificar a questionada indiretamente a distribuição da riqueza nacional. 

Surgiu a teoria das "utilidades marginais" como fundamento para a formação dos salários e preços, cujo expoente máximo seria Bohm-Bawerk

Precisava-se, portanto, fazer uma análise destas condições particulares, determinantes do geral (todo). Esta teoria sofreu sua crítica mais contundente por parte de Nicolai Bukharin, economista marxista, bolchevique, posteriormente assassinado pela ditadura de Stalin, com a obra sob o título "La economia politica del rentista (Critica de la economia marginalista)". 

Tendo esta obra de Bukharin como guia, neste artigo procurei acrescentar outras incoerências e contradições da teoria marginalista de Bohm-Bawerk. E, na sequência, procurei dar um enfoque sobre a produção com uma perspectiva dinâmica, fazendo referências aos novos bens lançados nos mercados e os que sofrem aprimoramentos constantes, diante de um consumidor sempre passivo, alheio aos lançamentos e as sofisticações técnicas.   

Para alcançar tal objetivo, tomei a exposição bastante esquemática do livro de Louçã & Mortágua. Não repeti os seus gráficos, pois estão muito bem representados, mas mencionei as páginas referentes aos mesmos e as explicações e conclusões dos marginalistas, expostas esquematicamente pelos referidos autores.

Esta teoria marginalista do consumidor foi esquematizada em gráficos pelos economistas clássicos com base na teoria exposta por Bohm-Bawerk. 

Ainda é a mesma que se ensina nos cursos básicos de economia, mestrados e, provavelmente, doutorados, em diversas faculdades do mundo e pretende ser o elo de ligação entre a microeconomia e a macroeconomia    

Em princípio, podemos anunciar as suas diretrizes: a teoria de consumidor (teoria marginalista de Bohm-Bawerk) tem como fundamento básico o pressuposto de que os bens podem ser comparados uns em relação aos outros, em função de uma utilidade genérica e abstrata, por cada agente econômico, sendo a soma das procuras individuais a procura total. 

A questão que em princípio se coloca é: como reduzir a um mesmo denominador comum as utilidades dos diversos bens (básicos, conspícuos, de consumo imediato e duradouros, complementares, indivisíveis, etc), despojados de suas qualidades (utilidades) não só intrínsecas, para que possam ser comparados e elegíveis? Necessidade (utilidade) em relação a quê, para quê? 

Tendo em vista tratar-se do homo economicus, presume-se que esta escolha seja racional (?), não há referências a isto. 

Nunca é demasiado reafirmar que esta distribuição de riqueza trouxe uma concentração tão extrema e absurda que até mesmo alguns economistas de formação clássica já questionam a sua utilidade para o crescimento auto-sustentado da economia e o seu progresso, com destaque para o economista Thomas Piketty e o Prêmio Nobel Joseph Stiglitz.  

Esta questão sobre a distribuição da riqueza e as suas consequências é antiga e levou à teoria do subconsumo, como causa única das crises. Keynes não descartou esta possibilidade, mas a relativizou a sua importância como sendo sempre a causa das crises econômicas. Sobre o assunto ver o artigo neste blog "Um breve retorno a Keynes - fundamentos, crises e a polêmica I -S". 

Através das críticas, este artigo também tem com finalidade responder uma questão sempre posta em dúvida por mim: "Para que serve a microeconomia?"

O artigo está dividido nos seguintes tópicos, autoexplicativos: Introdução, Teoria da Utilidade Marginal do Consumidor, Os salários através das opções consumo e lazer e Conclusão.  

Embora tenha a minha própria opinião, deixo que os leitores cheguem às suas conclusões. 


Teoria da utilidade marginal do consumidor

De modo a facilitar a exposição, os teóricos iniciam os seus argumentos com o exemplo entre dois bens e daí estendendo o raciocínio para todos os bens da sociedade. Num segundo momento, depois destas considerações sobre a escolha com base nas utilidades, as suas respectivas procuras serão definidas pelas restrições orçamentárias, vale dizer pela disponibilidade financeira dos agentes econômicos em comprá-los. A soma destas escolhas individuais determinará a procura agregada para a sociedade. 

Assim os primeiros passos para os consumidores serão estabelecer situações indiferentes de satisfação em relação a dois bens.

Mas palavras de Louçã & Mortágua, p. 96: 

"Para simplificar, consideremos que os cabazes têm apenas dois bens: legumes e peixe. Se assim for, podemos fazer representações gráficas. No Gráfico 4.1 o eixo horizontal (abcissas) representa diferentes quantidades (medidas em kg) de peixe e o eixo vertical (ordenadas) diferentes quantidades (medidas em kg) de legumes. 

[...] De acordo com a teoria neoclássica do consumidor, entre qualquer par de alternativas, por exemplo A e B, existem três relações possíveis. Ou A é preferido a B, ou B é preferido a A, ou A e B são indiferentes ao consumidor", negrito meu.  

Em outras palavras, o consumidor irá "construir" curvas de indiferença, nas quais, ao longo destas, será indiferente satisfazer a sua aptidão de consumidor, optando por qualquer combinação (entre A e B, ou exclusivamente entre um ou outro) que lhe assegure a mesma satisfação, em relação a estes bens. Também construirá outras curvas em relação aos dois bens que se distanciam das coordenadas, mas que não refletem utilidades. 

A construção de diversas curvas de indiferença em relação a dois bens já nos mostra uma incoerência. Louçã & Mortágua tentam decifrar e explicar o que significam para os teóricos utilitaristas do consumidor e nos dizem:

“[...] as curvas não nos dão uma medida de utilidade, mas tão só de ordenação. O que está representado no gráfico 4.1 é uma ordenação de cabazes. O cabaz D, sobre a curva mais distante da origem é preferido pelo consumidor a todos os outros”, Louçã & Mortágua, p. 97, negrito meus. 

E, posteriormente, concluem que estes pressupostos ou axiomas de racionalidade “são no mínimo, controversos”, (p. 98/9). Mas, o importante é que passa a existir uma nova racionalidade que não é mais a do homo economicus. 

Mas, qual a razão de ser preferido? É impossível não associar uma menor ou maior quantidade dos dois bens a uma menor ou maior utilidade (satisfação). E, a partir de determinado momento, cada quantidade adicional de um bem não traria qualquer utilidade, ou até mesmo uma utilidade negativa, pois deslocaria outros bens. Pode-se aumentar a utilidade total com um acréscimo de um bem, sem acrescer outro, permanecendo a deste último  constante ou não. E assim por diante.  

Por outro lado esta hipótese vai contra ao pressuposto inicial da própria teoria da utilidade marginal, conforme:

“Os primeiros marginalistas que sustentavam uma conceção cardinal da utilidade pressupunham que a utilidade marginal era decrescente. Isto quer dizer que o prazer que se obtém do consumo de um bem por unidade de tempo vai diminuindo à medida que este bem vai sendo consumido em doses sucessivas. Daqui deduziam que a disponibilidade a pagar por esse bem também iria diminuindo à medida que o desejo de consumo ia sendo saciado”, idem, p. 97, itálicos meus.

Diante disto, é forçoso admitir que as curvas de utilidades não representam uma combinação ideal que maximize a utilidade entre dois bens e, muito, muito menos, entre diversos bens. É apenas mais uma elucubração mental destes teóricos. 

Uma questão que se coloca diante desta premissa (curvas de indiferença) é que ela vai de encontro ao princípio do homo economicus, porque este age e decide levando em consideração o cálculo econômico, ou seja, considerando as vantagens econômicas, ou custo-benefício, (ver acima Tópico sobre os fundamentos do homo economicus). No caso em questão, sob esta hipótese, o consumidor, está, a priori, fazendo uma escolha sem qualquer parâmetro (referência) econômico, fato que foge totalmente à realidade de nossas decisões e, principalmente, do homo economicus

Como reduzir a um denominador comum as utilidades dos diversos bens para que possam ser comparáveis e elegíveis? Necessidades, utilidades em relação a quê, para quê? Enfim, é o próprio conceito de "utilidade" que é posto em questão. 

Mas, não é só: o que deverá concretizar a sua “escolha” é a restrição orçamentária, ou seja, seu poder aquisitivo que entra a posteriori, depois de definidas as respectivas utilidades, p. 99, obra citada.  

Por isto, depois de definir as suas opções em relação aos dois bens a restrição orçamentária irá impor uma combinação de aquisição desses bens e seus preços. Frente a esta imposição, será obrigado a “optar” pela combinação de bens que mais irá satisfazê-lo. Mas, para isto deverá existir uma curva de indiferença que represente uma utilidade ideal (abstrata), ainda que sem restrição orçamental. 

Bukharin colocará a questão de maneira objetiva e prática: 

"Pues cualquier ama de casa, en su "pratica" cotidiana, parte de unos precios dados y del dinero que tiene. Es sólo dentro de esos limites que cierta valoración basada en la utilidad puede hacerse. [...] Pero esa valorización presupone la existencia de precios de mercado", p. 29, negritos meus.

"Bohm-Bawerk por lo tanto admite que en nuestra valorización subjetiva (modestamente admite que en la mayoria de los casos) se asume un valor real objetivo. Pero como su tarea consiste precisamente en derivar o valor real (el patrón que determina el precio) de las valorizaciones subjetivas, es claro que esta doctrina de la utilidad por substitución incurre en un círculo vicioso. El valor objetivo se deriva de las valorizaciones subjetivas, que a su vez se explican por el valor objetivo", p. 37, itálico meu. 

Qual o problema que este a posteriori irá nos trazer? Ora, sendo as restrições orçamentárias as disponibilidades financeiras de cada agente deduz-se que elas são definidas pela distribuição da renda da sociedade, em salários, lucros, aluguéis e juros. 

Assim, na realidade o que estes teóricos estão a dizer é que os salários, lucros, juros e aluguéis são definidos aprioristicamente, antes da definição dos preços, cujas escolhas dos produtos estarão limitadas por estas restrições orçamentárias. Mas, os salários, os juros, bem como as matérias primas, materiais de escritório, produtos intermediários, energia e muitos outros são uns dos componentes dos custos e despesas de produção e, portanto, dos preços e os lucros, basicamente, as diferenças entre preços e custos e despesas de produção.  Estabeleceu-se um ciclo vicioso.

Para os autores clássicos, de acordo com suas metodologias, a procura total de bens da sociedade é a soma das procuras individuais, estabelecidas através das curvas de indiferença e restrições orçamentais:

Segundo Louçã & Mortágua: 

"Esperamos intuitivamente que o consumo de um bem tenda a diminuir quando o seu preço aumenta. Com o arsenal de curvas de indiferença e da restrição orçamental, a microeconomia neoclássica consegue ilustrar esta intuição. Na situação em que existem apenas dois bens, quando o preço de um dos bens aumenta (peixe), mantendo-se o orçamento (em termos nominais) e o preço do outro bem constante (legumes), continua a ser possível adquirir a mesma quantidade de legumes, mas não a de peixe. Graficamente é como a restrição orçamental se deslocasse para a esquerda (Ver Gráfico 4.4). Com o deslocamento da restrição orçamental passa a existir um novo ótimo do consumidor em que, como esperado, o consumo de peixe é inferior", p. 99, negritos meus.  

Fico me perguntando como chegaríamos a lei da procura total para determinado bem, partindo destes casos individuais, tendo em vista a diversidade das restrições orçamentais, em simultâneo com os casos da não restrição orçamental. Observamos que a conclusão que se chega através das curvas de indiferença pode até ser lógica, neste aspecto, em relação a um agente com uma mesma restrição orçamental, muito embora esta teoria da utilidade marginal seja incoerente e não se sustente perante as críticas. Mas, isto não significa que através desta conclusão particular possamos extrapolá-la para o conjunto da sociedade. Trata-se de um método indutivo, ineficaz para se atingir o objetivo, pelo fato de que o todo não é a soma das partes (assunto que tenho debatido ao longo deste artigo).  

Esta conclusão faz a lei a procura total depender de uma única restrição orçamental. Imaginemos um outro consumidor com restrição orçamental (ou sem esta restrição) bem superior a um outro, em que a escolha dos bens se efetuou. O segundo consumidor, dada a sua restrição orçamental superior, ou, principalmente, não restrição, pode ser insensível à mudança de preço. Nesta, este consumidor poderá estar disposto, conforme a sua avaliação subjetiva de utilidade, a pagar um preço mais elevado pelo mesmo bem escolhido pelo consumidor de menor restrição orçamental, numa quantidade maior que aquele ou numa mesma quantidade de sua escolha anterior.

Se plotássemos esta situação para um gráfico teríamos uma outra situação inusitada, em que a soma das duas opções não iria refletir a lei da procura total. A um preço mais elevado iria haver uma procura mais elevada para o produto. Como se dá isto na prática não se sabe e está instalada a confusão. Não estou questionando a lei da procura, mas a forma que se chega à procura total, a partir da soma de diversas restrições orçamentárias. E se a procura é total ela não pode ser a média.   

Calculando simultaneamente em tempo integral os novos preços e transmitindo-os para os diversos mercados, em decorrência de novas utilidades e das variações de outros fatores que compõem os custos de produção dos bens finais, pergunta-se: como concentrar, processar e transmitir instantaneamente todas estas diversas interações em constantes mutações para os inúmeros mercados, estabelecendo um preço naquele exato momento em que novos agentes econômicos estão definindo novas utilidades marginais, em diversos recantos. Isto faz sentido?

Segundo Macedo:

"Economistas famosos como Thorstein Veblen, John Maynard Keynes e Herbert A. Simon, entre tantos outros, criticaram o Homo Economicus.

Para eles, os agentes econômicos precisariam de um conhecimento muito grande de macroeconomia e
previsão econômica para tomar decisões racionais. 

Os agentes econômicos não conseguem avaliar riscos e incertezas e têm racionalidade limitada na tomada de decisões", por Jurandir Sell Macedo, em "Homo economicus: origem, significado e o que está ... ", em htpps://warren.com.br/magazine/homo-economicus..

Além disto, excetuando os momentos de crises, os preços dos bens finais costumam permanecer os mesmos durante períodos razoáveis de tempo, independentemente dos ajustes que ocorram em outros fatores, mesmo se incluirmos as avaliações subjetivas das utilidades.  

Seria impossível imaginar o que surgiria da interação entre milhares de consumidores, nos mais diferentes recantos, em relação aos inúmeros bens ofertados, agindo em simultâneo.

As incoerências se avolumam ao adentrarmos nos pormenores:

- a vida social cria suas próprias necessidades e ditam as regras da produção e consumo; 

- o princípio da utilidade marginal decrescente, no qual baseiam-se as curvas de indiferença, não se aplica indistintamente e na mesma intensidade em relação a todos os bens, que saciam os instintos básicos do ser humano. Os bens de luxo fogem a este princípio e são adquiridos por motivos sociais, como status; e, ao que parece não estão sujeitos à lei de utilidade marginal decrescente; 

- as classes sociais mais abastadas não possuem restrições orçamentárias, principalmente para os produtos básicos. Assim, os preços destes produtos não estariam submetidos às restrições orçamentárias;

- estas restrições orçamentárias, que não existem para todas as classes em relação aos bens elementares/ básicos e muitos outros bens de consumo durável, são o resultado da distribuição da renda nacional, que é determinada via preços e salários, com fundamento (bastante objetivo) na divisão social entre as classes de produtores, rentistas, financistas, trabalhadoras (assalariadas) e outros: 

 - como fazer curvas de utilidades (indiferenças) para os novos produtos, lançados constantemente no mercado, que chegam com preços definidos? Como avaliar a utilidade dos celulares, PCs e outros produtos eletrônicos sofisticados quando foram lançados?; 

- como avaliar as utilidades de produtos similares, concorrentes e tecnologicamente sofisticados e complexos, constantemente aperfeiçoados com novas inovações, se na grande maioria das vezes os consumidores não estão familiarizados com a evolução técnica?; neste caso teríamos que estabelecer um novo parâmetro sobre a questão utilidade-necessidade, de todo não tão convincente, qual seja a praticidade, que não afasta uma avaliação custo-benefício;

- o mesmo raciocínio vale para os bens de produção que são constantemente sujeitos a invenções e inovações tecnológicas, mas que Bohm-Bawerk faz depender seus preços das utilidades marginais dos produtos finais; normalmente ocorre o contrário, pois, em regra, as invenções e inovações, depois de determinado tempo, tendem a baixar os preços dos produtos finais, sem alterar suas utilidades;  

- ao que tudo indica, na importante indústria da moda os preços são determinados sem que os produtos preencham qualquer necessidade básica, ou seja, são adquiridos e tem preços elevados por não terem utilidades (o importante é não ter utilidade) a não ser satisfazer uma necessidade social e especialmente determinada pela distribuição da renda total, no caso, nacional;

- os bens podem ter concomitantemente utilidades que são independentes de outros, complementares, substitutivas, produtivas. Embora Bohm-Bawerk faça os preços dependerem de suas utilidades marginais, como se dariam as interações dessas diversas utilidades na determinação dos preços de cada bem?

- a situação se complica ainda mais quando temos que confrontar utilidades de bens com finalidades, necessidades e durabilidades distintas: alimentos (bens básicos necessários, não duráveis, consumíveis de imediato) x celulares (utilidade determinada socialmente, bem durável);  remédios x alimentos; leite x coca cola e assim por diante;

- questões práticas se impõem. Quais seriam as sequências lógicas e o tempo necessário de se passar de uma configuração de 2 (dois) bens para dezenas de bens? Um bem descartado, a priori, poderá entrar novamente na composição no final da lista, em decorrência de novas avaliações com outro(s) bem (s)? E o outro inicialmente escolhido seria descartado? Sendo assim, voltaríamos ao ponto inicial e novas sequências de decisões deveriam ser estabelecidas;   

- os preços dos bens públicos (preços, custos de produção e manutenção), exatamente por serem públicos, não podem ser determinados em razão da soma das utilidades dos agentes econômicos, além de entrarem em conflitos com outros valores sociais incomensuráveis:

Conforme:

"A mercadorização de <<bens partilhados>> pode comprometer valores políticos, nomeadamente a liberdade democrática"

"A liberdade que o mercado promove é a do uso privado dos bens; no entanto, a expansão desta liberdade pode privar-nos dos <<bens partilhados>>, aqueles cujo valor deriva do facto de poderem ser gozados por todos", Louçã & Mortágua, pgs 151/2.

E quanto aos serviços, como se definirão seus preços? Como comparar em termos de utilidades entre si e com bens físicos? Em regra não cruzam fronteiras, muitos são personalizados, outros dependem do grau de confiança dos utilizadores, outros indispensáveis para a sobrevivência e suplantar a dor e outros, em razão das circunstâncias, são impostos. Se tenho uma dor de dente insuportável não tenho outra opção a não ser procurar um dentista. 

Imaginemos os preços do transporte. Todos os dias milhares de pessoas que se dirigem aos grandes centros são "obrigadas" a tomar o transporte para poderem trabalhar e garantirem o seu sustento e o de seus familiares. Não se trata de uma simples opção ou escolha. 

O ouro ao longo da história e concomitantemente assumiu diversas funções (ou utilidades se quiserem). Foi medida de preço, meio de troca, reserva de valor, objeto de especulação, bem suntuoso que demonstrava riqueza e poder, objeto de pesquisas, utilizado nos processos produtivos (também o diamante) e outras. Como reduzir todas estas funções a um denominador comum, passível de comparação com outros bens e serviços?

Esta utilidade geral e abstrata comporta diversas situações e, por isso, se torna uma inutilidade.

E quanto a concorrência entre produtores e prestadores de serviços para a definição dos preços? O que nos dizem?  

Nesta teoria os produtores não podem ser totalmente "responsabilizados" pelas ofertas dos produtos, porque numa sociedade de consumo e tecnologicamente avançada a produção está limitada pela tecnologia e, segundo esta mesma teoria, pelas leis objetivas dos rendimentos decrescentes. Portanto, restaria aos consumidores a responsabilidade última pela fixação dos preços. 

Esta teoria não tem nada a nos oferecer em relação à oferta de produtos, cuja curva corresponde a curva de custo marginal em sua parte ascendente, quando começam a prevalecer os rendimentos decrescentes; como os produtores também são homo economicus procuram maximizar o lucro, ou seja produzir até alcançarem o lucro máximo, que se dará quando o preço de mercado se iguala ao custo marginal do produto (custo adicional para produzir uma unidade do produto): 

"A curva de oferta do produtor individual que representa a quantidade oferecida para cada um dos preços corresponde à parte ascendente da curva de custo marginal", Louçã & Mortágua, p. 104.  

Por este motivo, não admitem que a distribuição de rendimentos possa ser injusta em relação às necessidades elementares de grande parte da população, aos valores morais, ou mesmo prejudicial (ou empecilho) ao crescimento auto-sustentado da economia e, em alguns casos, razões para as crises; isto, porque esta distribuição questionável obedece a leis naturais e objetivas, que não podem ser alteradas pela ação dos agentes (diga-se governo, sindicatos), sob pena de trazer consequências mais danosas para a economia, inclusive desemprego; assim, respeitar estas leis sagradas traz, sem questionamento, o bem social.

Diga-se que a questão da procura da maximização do lucro não é pacífica entre os estudiosos, pois, no mínimo, a concorrência entre produtores possibilita e estabelece estratégias divergentes. 

Entretanto, Bohm-Bawerk, seguindo o seu raciocínio utilitarista, irá afirmar que os preços dos bens de produção também serão determinados pelas utilidades dos bens de finais produzidos, mesmo aqueles bens de produção que produzem bens de produção, que produzem bens de consumo:

"De todos los grupos sucessivos de mercancias productivas del más remoto orden depende uno y el mesmo resultado, a saber, la utilidad marginal del producto final", apud Bukarin, p. 54. 

"La magnitud de la utilidad marginal se expressará primero y ditectamente en lo valor del producto final. Este constituye la guia del grupo de mercancias del que procede, y a su vez, del valor de las mercancias del tercer orden, ...", idem, p. 54.

Conforme afirma Bukharin:

"Esta situacion se encuentra siempre que ignoremos la circunstancia de que uno y el mismo medio de producción puede servir, y asi suele ser el caso, para la producción de varios medios de consumo", p. 54. 

Não devemos esquecer ainda que existem matérias primas que estão tanto nos produtos finais quanto nos intermediários e meios de produção, mesmo nos de ordem mais remota. 

Como se dá isto na prática não se sabe e está instalada a confusão. Nem mesmo um computador de última geração seria capaz de efetuar os cálculos dos preços a cada instante, em todos os lugares e em cada situação específica, que se altera constantemente (inovações e aprimoramento tecnológico de produtos finais, de produção; variações de preços bens intermediários e matérias primas; variações de preços dos insumos e dos fatores de produção; despesas com armazenamentos, meios de transporte, logísticas, propaganda, etc; todos eles dependentes de avaliações segundo as utilidades "abstratas" dos diversos produtos finais; e que em cadeia iriam repercutir nos preços de oferta dos bens finais). Como isto seria possível numa sociedade que ainda estava "relativamente" nos "primórdios" da industrialização? 

Cito novamente Bukharin:

"Pero la distancia entre los medios de producción y de consumo es en general tan amplia que incluso los representantes de la Escuela dudan de la dependencia del valor de los medios de producción del valor del producto", p. 56, negritos meus.    

Por bem que os compêndios de economia clássica que seguem a teoria da utilidade marginal na determinação dos preços dos bens de consumo evitam este caminho, conforme trata Louçã & Mortágua. 

Contrariamente, as conclusões de Bohm-Bawerk, admite-se, de modo geral, principalmente na prática contábil internacional, um caminho causal inverso, em que os preços do bens de produção irão transferir aos bens subsequentes (no caso finais) uma parcela do seu valor, que irão compor os custos de produção destes bens finais, e, consequentemente, os preços, através de uma estimativa de desgaste do bem de produção, em decorrência do uso, denominada depreciação. Existe também a chamada obsolescência tecnológica que complica ainda mais a situação. Da mesma forma, as matérias primas transferem os seus preços para os produtos finais. 

Nas grandes lojas de departamento (magazines) os preços dos produtos são simplesmente fixados e não existem possibilidades de regateio, ou seja, são o que são. Os grandes supermercados fazem semanalmente ofertas com descontos para determinados produtos, que não ocorrem em outros supermercados concorrentes. Os preços mais baixos são o chamariz.   

Assim, de uma certa forma, podemos afirmar que na teoria da utilidade marginal atualmente aceita existe uma grande lacuna, tendo em vista que não se aplica o mesmo critério na determinação dos preços de todos os produtos.

""O más sencillamente "el valor de una mercancia se determina por su utilidad marginal (adicional)", (ibid, pp 28, 29"), apud Bukharin p. 32.

"Esto se debe al hecho de que bajo el sistema de producción bajo la division del trabajo, las ventas proceden principalmente de um excedente !!! que no estaba en principio destinado para las necessidades personales del dueño...", (Bohm-Bawerk apud Bukharin, p. 35).
  
À medida que Bohm-Bawerk prossegue em sua exposição teórica se defronta com novas situações que irão requerer novas interpretações, sobrepostas ou em substituição às preliminares, conforme expõe no Capítulo III, "Teoria do valor por substituição": 

"Me inclino a pensar que en la mayoria de las evaluaciones subjetivas que se realizan están presentes estas valoraciones conjuntas. Pues rara vez estimamos las mercancias que nos son indispensables por su utilidad directa, sino casi siempre por su "utilidad en substución" de otros tipos de mercancias", (Ibid p. 39), apud Bukharin p. 37, negritos meus. 

"El comprador por lo tanto contribuirá a la formación de los precios no según la utilidad marginal directa inferior, construida sobre un precio de mercado hipotético, sino según la mayor utilidad marginal indirecta", apud Bukharin, p. 38. 

Bukharin colocrá a questão de maneira objetiva e prática

"Bem, qualquer dona de casa, em sua "prática" diária, começa a partir dos preços e o dinheiro que ela tem. É apenas dentro desses limites que alguma avaliação baseada em utilidades pode ser feita Mas esta valorização pressupõe a existência de preços de mercado".

Bukharin vai além e questiona a razão dos preços serem deduzidos da utilidade marginal do último bem desejado, em uma ordem decrescente de cada bem adicionado, devendo, no caso, serem estabelecidos segundo a soma das utilidades marginais de cada bem adicionado.

"O sea, que no solo la graduación del valor depende de la selección de la unidade de medida, sino que podria  cuestionarse si o valor existe em absoluto. [...] Si (por usar el ejemplo de BB) un granjero consume diez litros de agua por dia y dispone de 20 litros, el agua carecerá de valor para él. [...] Si tomamos como unidad una combinación de dos de las anteriores, la utilidad marginal no sería 1 x 2 sino 1 + 2, o sea, no 2, sino 3; y el valor de tres unidades já no seria 1 x 3, sino 1 + 2 + 3, o sea, no 3, sino 6", (Capitulo Dois, tópico 4. La medida del Valor y la Unidad del Valor).   

Os salários através das opções consumo e lazer

A teoria dos preços de Bohm-Bawerk é um verdadeiro absurdo. Soma-se a isto o fato de que para a microeconomia marginalista clássica os salários serão também definidos através de outras curvas de indiferença, que combinam opções de lazer e trabalho.

Nas palavras de Louçã & Mortágua:
 
"Assim, a oferta de trabalho de cada indivíduo dependerá da sua escolha entre trabalho (L), cujo fim último é consumir (C), e lazer (l), para cada nível salarial", p. 104.
 
Ou seja, o trabalhador "construirá" curvas de indiferença nas quais o lazer e a vontade (necessidade) de trabalhar independem de quaisquer considerações financeiras, mesmo que seja um homo economicus. Simplesmente, estará imbuído de vantagens de trabalhar ou não. 

"As várias combinações possíveis entre C e I são representadas por um mapa de indiferença. Nele, cada curva de indiferença (CI) representa diferentes combinações de C e I que garantem o trabalhador o mesmo nível de utilidade", p. 105. 

No ponto extremo de cada curva o trabalhador "basicamente" preferirá uma única opção. Assim, pode preferir apenas o lazer, sem levar em consideração suas necessidades básicas, que, presume-se, numa economia de mercado serão satisfeitas com dinheiro. Pasmem. 
 
"Por outro lado, o valor monetário do consumo (PC) não poderá ultrapassar o salário pago pelas horas trabalhadas (WL)". 

"Rearranjando, obtemos a reta orçamental que limita as escolhas entre consumo e lazer", os autores, p. 105.

"A reta abaixo representada dá-nos os espaços de combinações de combinações de consumo e lazer. No ponto A, o trabalhador escolhe não consumir (C=0) e, nesse caso, terá todo o tempo disponível para o lazer", negrito meu, p.105.
 
Em relação ao salário, a restrição orçamental nada mais é do que uma oferta de salário do empregador aceita pelo empregado ou salário estabelecido através de negociação, ou através de um acordo sindical. Mas, como estabelecer uma oferta de salário e um aceite sem um referencial de preços? Como se definirá a oferta de salário, que irá representar a restrição orçamentária? De onde surge? Como definir salário monetário sem preços de produtos?

Por outro lado, a restrição orçamental referente ao lucro é a diferença entre preços e custos/despesas de produção (incluindo os salários).

Louçã & Mortágua explicam como se dá a escolha entre trabalho (consumo) e lazer, para o assalariado, segundo a teoria marginalista: 

"Como em todas as outras escolhas em contexto de microeconomia, a escolha do agente faz-se mediante uma restrição orçamental", p. 105.

"Assim, como em qualquer outro exercício de otimização, a melhor escolha possível será aquela em que a curva de indiferença é tangente à restrição orçamental. A partir desse ponto, que representa o ótimo de Pareto, todas as escolhas serão impossíveis porque ultrapassam a restrição orçamental", p. 105, itálicos meus.
 
De acordo com a exposição gráfica que consta do Gráfico 4.16, chega-se a seguinte conclusão:

"Se o preço do lazer aumenta, ou seja, se o salário aumentar, a teoria diz-nos que o agente irá querer menos lazer e mais trabalho", p. 106.

Como corolário, se o salário diminui o assalariado irá optar por mais lazer (mesmo que as necessidades básicas continuem as mesmas ou aumentem). Mas, esta situação poderá ser contrastada em razão do chamado efeito rendimento:

"Quando o salário aumenta, o rendimento disponível também aumenta. Neste caso, se um bem for normal, a procura aumenta quando o rendimento sobe. Assim, mais salário significa uma maior procura pelo bem lazer em relação ao consumo", p. 107.

Segundo os autores citados, da combinação dos efeitos substituição e rendimento a teoria clássica chega a seguinte conclusão: 

"É comum na interpretação destes resultados ambíguos, considerar que o efeito substituição tende a predominar em níveis salariais mais reduzidos, dando lugar ao efeito rendimento à medida que os níveis salariais aumentam", p. 107.
 
Assim, para a microeconomia, o trabalhador diante de uma restrição orçamentária (que não se sabe como foi estabelecida; apareceu do nada) será o responsável pela escolha do tempo dedicado ao trabalho e lazer e, consequentemente, pelo seu salário.

Mas, a questão não para aí. Com base nestas formulações teóricas, qual será a conclusão que os economistas clássicos farão sobre a questão do desemprego, numa economia assolada pela depressão?

O nível de salário de equilíbrio é o que decorre da interseção das curvas de oferta e procura agregadas (soma das ofertas e procuras individuais). Dessa forma, considerando o princípio adotado pela teoria clássica de que o todo é a soma das partes, projeta-se para o nível social (procura e oferta agregada) a mesma conclusão no tocante às opções entre trabalho (consumo) e lazer.

Segundo Louçã & Mortágua:
 
"Considera-se assim que todo o desemprego que ultrapassou este ponto de equilíbrio é voluntário, uma vez que resulta da decisão dos trabalhadores de não aceitar vender o seu trabalho por um salário mais baixo", pgs 108/9. 

Da mesma forma, conclui-se que se o governo fixar um salário mínimo acima do salário de equilíbrio, determinado pelas curvas de oferta e procura agregadas, haverá desemprego (ver Gráfico 4.26). 

Ora, o pressuposto e a conclusão de todo este esboço teórico é que o trabalhador será, em última instância, o responsável na definição do seu próprio salário, porque ele irá definir o tempo que irá dedicar ao trabalho e/ou ao lazer (estabelecidos um em relação ao outro, sem qualquer outra referência, nem mesmo a satisfação das necessidades básicas). 

Entretanto, a história do capitalismo nos mostra que nos seus primórdios os trabalhadores diante das necessidades mais prementes aceitavam quaisquer salários oferecidos, sem terem, portanto, esta opção de escolha. Por este motivo e outros, muitos governos passaram a estabelecer um salário mínimo, para a tristeza dos teóricos clássicos, que viam nestas medidas uma afronta às leis naturais da economia.  

Para os clássicos e assemelhados a economia estará e permanecerá no desemprego simplesmente porque a determinado nível salarial os trabalhadores irão preferir o lazer, em relação a mais trabalho. E isto não convence o observador perspicaz nem as pessoas de bom senso, mesmo que não possuam uma formação econômica. Ou seja, todo desemprego é voluntário.

Ora, depressão e desemprego maciço são as faces de uma mesma moeda.  Assim, conclui-se, por dedução, que os trabalhadores, ao rejeitarem o nível salarial de equilíbrio, também serão os responsáveis pela crise.

Estas conclusões não condizem com as realidades ao longo da história.  

Louçã & Mortágua apresentam 3 argumentos que contestam esta conclusão:
 
- por requerer exercícios complexos de maximização e mensuração;

- pelo fato de que a produtividade também depende de motivação e realização, difícil de se obter com baixos salários;

- pelo fato de que "a visão do trabalho enquanto mercadoria é problemática do ponto de vista ético e social", pgs 109/10.
 
Marx já tinha colocado o problema do fetichismo da mercadoria na sociedade capitalista, onde as relações sociais se apresentam como relações entre coisas, mercadorias, sendo a força de trabalho também uma mercadoria. Tudo se resume à mercadoria.
 
Em resumo: para definir os preços dos bens, os salários, lucros e demais rendimentos deverão estar definidas antecipadamente. Mas, salários, lucros, juros, etc são estabelecidos também via preços. Portanto, a questão é como seria fixada a oferta por salário que resultaria na restrição orçamentária? Sem qualquer conexão com outras variáveis sociais presume-se que seria determinada aleatoriamente. Entramos, num ciclo vicioso.
 
   Conclusão

Sendo um teórico marxista, Bukhárin procurará encontrar nas condições materiais concretas da realidade, historicamente determinadas, a razão do surgimento das teorias e ideologias que as acompanham. 

Faz um paralelo com o surgimento da escola histórica alemã que surge na mesma época, que procurava responder e enfrentar os desafios da economia alemã frente à industrialização inglesa, o que acontecerá sob a política engendrada por Bismark, no quarto final do século XIX. 

Segundo Berthochi:

"Na sua concepção, tais aspectos da consciência social do rentista, derivados do seu ser social, determinam a sua consciência teórico e no nível das ideias científicas", p. 7.

"Do ponto de vista genérico-social, tanto a escola histórica como a clássica são nacionais, na medida de que ambas são o produto de uma evolução histórica e localmente limitada. De um ponto de vista lógico, não obstante, os clássicos são cosmopolitas e os partidários da escola histórica são nacionais", Bukhárin apud Bertochi, p. 4/10.

Para Bukhárin, o rentista surge como consequência das grandes transformações ocorridas na economia capitalista, no último quartel do século XIX, em decorrência da concentração-centralização do capital, das fusões e do surgimento das sociedades anônimas, sob a égide do capital financeiro. Estas transformações sociais contribuíram para gerar no topo da sociedade uma quantidade de agentes econômicos desligados das funções produtivas, vivendo do circuito financeiro, auferindo rendimentos financeiros e especulativos com títulos, ações, commodities.

Esta teoria marginalista ainda é a mesma que se ensina nos cursos básicos de economia, mestrados e, provavelmente, doutorados, em diversas faculdades do mundo e pretende ser o elo de ligação entre a microeconomia e a macroeconomia. 
   
E mais uma vez esta construção teórica entra em grande contradição com os diversos approachs metodológicos, pois pretende construir uma teoria objetiva das relações (leis) econômicas a partir de critérios "subjetivos", baseados nas "utilidades" marginais abstratas de bens para os agentes econômicos, considerados individualmente, não mensuráveis.
 
Ao focarem numa teoria do consumidor, partindo de curvas de indiferenças na escolha entre dois bens e daí projetando para todos os demais bens, definindo os respectivos preços através de restrições orçamentais, entram em um novo dilema ao assumirem que a moeda tem apenas as funções como meio de troca e medida de valor. Apenas facilita as trocas entre bens reais. 

Assumindo esta posição, os economistas clássicos vão conceber a economia em relação aos bens físicos, e a moeda entrará apenas como facilitador de trocas. Comumente fala-se em salários reais por ser mais fácil estabelecer sua correlação e conversão em bens básicos a serem adquiridos. Assim, os salários monetários são desnaturalizados e considerados como salário real, em termos de bens físicos. Mas, teria sentido falar em juros convertidos em bens (os juros são reais quando descontados as variações positivas do custo de vida, inflação), lucro e aluguel definidos em relação a bens? E quais seriam estes bens, considerando que os consumos das diversas classes são diferentes? 
    
Por isto, muitos modelos matemáticos trabalham com salários reais, a moeda entrando apenas no final, não tendo qualquer importância, senão facilitar as trocas.
 
Em resposta à minha pergunta inicial concluo que a microeconomia marginalista do consumidor não atinge os objetivos a que se propõe, pois, como vimos, não explica de forma convincente a formação dos preços e salários; além de ser incoerente em suas formulações básicas, suas proposições levam a um ciclo vicioso, como bem demonstrou Bukharin. 

Louçã e Mortágua colocam esta questão de forma clara:
 
"O modelo neoclássico do mercado envolve uma interessante circularidade: os consumidores e os produtores respondem a preços que para eles são <<dados>>, mas os preços resultam em última análise das suas escolhas reveladas em procuras e ofertas. O artificialismo do mecanismo centralizado de processamento de informação é necessário precisamente para resolver esta circularidade. Entretanto, nos manuais introdutórios de microeconomia, as dificuldades que daqui decorrem são contornadas com formulações vagas como: <<a oferta e a procura interagem para produzirem um equilíbrio>>", p. 111, itálicos meus. 

Ou seja, para contornar cada dificuldade com que se defrontam recorrem a novas abstrações, hipóteses, que se superpõem a tantas outras, e no final nos defrontamos com a impossibilidade de discernir o que é ou não relevante.
   
As suas deduções sobre a utilidade marginal dos bens finais como determinante dos preços dos bens de produção são uma calamidade, que nem mesmo os seus seguidores clássicos aceitaram. Dessa forma fica uma lacuna intransponível, na qual somente alguns bens têm os preços determinados por sua sutilidades marginais. 

As consequências não são menos incoerentes. Para que haja uma funcionalidade perfeita da máquina econômica os agentes econômicos, considerados individualmente, têm que ser livres em suas escolhas e decisões.
 
Diante disto, a fixação de salário mínimo pelo governo ou a atuação dos sindicatos laborais são vistos como intervenções, que levam à "rigidez" dos salários (inflexibilidade para baixo) e, portanto, impedem que a economia alcance o "ótimo" ponto de equilíbrio, que, por sua vez, "obedece" a leis objetivas, deduzidas estas do comportamento utilitarista do consumidor. Pasmem. 
 
No entanto, a ojeriza e o ódio que devotam aos sindicatos dos trabalhadores não é direcionada aos sindicatos patronais, daí serem bastante severos para com aqueles, justificando o uso da força, em nome da justiça e da ordem. Para estes economistas sindicatos trabalhistas e governos deveriam ser banidos. 

Mas esta intervenção repressiva, justificada em nome de uma justiça e uma ordem, abstratas, fere os princípios democráticos fundamentais, da liberdade de opinião, reunião e organização, princípios básicos da filosofia iluminista, que os inspirou, e que constam em todas as legislações modernas, desde que não atentem para a tomada de poder e mudança de regime social. 

Cito Louçã & Mortágua, mais uma vez:

"Mas como garantir a não existência de organizações sindicais ou de movimentos sociais semelhantes sem uma ativa intervenção repressiva do Estado, e, portanto, sem limitação de liberdade?", p. 176, itálicos meus. 
 
Um outro argumento aventado, também não convincente, é que os tais sindicatos (trabalhistas) fomentam e facilitam a corrupção; mas os noticiários e as pesquisas demonstram que os grandes interesses econômicos das empresas e dos que ocupam o topo da pirâmide social sempre andaram de mãos dadas com os políticos, a chamada "porta giratória" (Chang, p. 250; Louçã & Mortágua, p. 176). Os lobbies empresariais nos Estados Unidos são normais e legais, e os escândalos que os acompanham também. 

Esta questão da corrupção nos Estados Unidos da América (que se arvoram em ser a polícia anticorrupção do mundo subdesenvolvido) foi muito bem colocada pelo famoso economista Nouriel Roubini, numa entrevista, com o título: "Nouriel Roubini em Davos: Governo dos EUA opera com "corrupção legalizada", que reproduzo:

"Nos EUA, se se pensa bem, temos um sistema de corrupção legalizada. K. Street [1] e os grandes lobbies alteram as leis, com o dinheiro que distribuem entre os políticos; é assim que quem tem recursos tem impacto maior sobre o sistema político que os que não têm. Por isso não é verdadeira democracia: é uma plutocracia.

Não que seja novidade para quem preste atenção. Na verdade, a Universidade de Princeton produziu um estudo exaustivo que andou pelas manchetes, no qual demonstra que a riqueza determina a forma final das leis (o que o estudo chama de "resultados legislativos") no congresso dos EUA", em www.orientemidia.org/nouriel-roubini-em-davos-governo-dos-eua, 24.01.2015.
  
Em sentido paralelo, William D. Cohen, advogado e juiz, autor do livro "Money and Power - How Goldman Sachs came to rule the world", em reportagem à revista Visão nº 1220, de 27/07/2016, declarou: 

Pergunta: Como viu o papel do Golman Sachs durante a crise do subprime?

Resposta: Houve muito mal comportamento do Goldman e de muitas outras empresas durante a crise financeira. Muita gente devia ter sido acusada e posta na prisão por causa desse comportamento mas, por razões que são um mistério para mim, o Departamento de Justiça de Obama decidiu não o fazer. Não se fez justiça, e decidiram aplicar multas enormes a estes bancos à custa de seus acionistas".

Diante de todos estes dilemas, só posso concluir que a teoria microeconômica das utilidades marginais cumpre apenas uma função ideológica, qual seja levar a ideia de que são os consumidores e trabalhadores que, em última instância, são os responsáveis pela fixação dos preços e salários; e que, consequentemente, a distribuição de riqueza em determinada sociedade obedece a leis objetivas, que não podem sofrer intervenção, por parte dos governos e sindicatos trabalhistas, sob pena de afastá-la da sua tendência natural ao ponto de "equilíbrio", ponto de satisfação de todas as necessidades da sociedade e dos agentes econômicos, em todos os sentidos, físicas, sociais, psicológicas.